Capítulo 5 - A mente e a memória. Narguilé, Mcdonald's e Deus.
A mente e a memória são traiçoeiras. Elas têm a mania de reconstruir certos episódios do passado de modo a fazer-nos a personagem principal ou o herói das nossas vidas. O melhor modo de não sermos enganados é manter um diário por perto, onde anotamos todas as aventuras e desventuras da nossa existência. Ainda assim é muito provável que sejamos enganados.
Ontem à noite sai com uns amigos. Fomos beber uns copos, fumar um narguilé e, para variar, a noite acabou no McDonald’s. Durante toda a noite senti-me particularmente engraçado, como se alguém tivesse decidido que eu iria fazer toda a gente rir-se. Mas quem detém o poder para tomar uma decisão dessas? Fui tocado pela sábia mão de Nosso Senhor? Não acredito. Obrigado, Memória, por me relembrares o meu ateísmo. Neste tipo de situação é sempre bom ser ateu porque quando achamos que estamos sozinhos, sem nenhuma força motriz a nortear a nossa vida, e as coisas nos correm bem, só temos de agradecer a nós mesmos. O problema é quando as coisas não nos correm de feição; aí a culpa também é nossa.
Deus costuma ser o maior bode expiatório de qualquer civilização. Quantos assassinos ou terroristas não se defendem dizendo que Deus lhes suscitou os ímpetos criminais? Quantas pessoas não pedem auxílio a Deus num momento delicado da sua vida, ou de um familiar? Quanta gente não encontra em Deus um catalisador de bondade? Deus pode ser instrumentalizado para o bem e para o mal. Deus, com todos os seus defeitos, cria a mais importante das coisas: o sentimento de pertença. Em torno de Deus existe uma comunidade, e quando falo em Deus não penso apenas naquela imagem do velho barbudo sentado numa nuvem. Deus pode ser Deus, mas também pode ser o Benfica, o Sporting, o Ginásio, o Yoga, a Natação, o Jiu Jitsu, o Marketing Digital, Comer Gajas, etc.
Pouco acredito em mim e menos acredito em deuses. Sinto-me regularmente tentado a acreditar numa deusa chamada Comédia, mas só serei um crente quando ela acreditar em mim também.
Ontem quase acreditei na Comédia. Afinal, eu estava a propagar o sacramento daquela deusa: o riso. Ao sairmos do Mcdonald’s os meus amigos pediram-me para levar o carro até ao Alto de Santa Catarina; queriam comer a olhar para o rio Tejo. Eles prometeram-me que ali havia bancos públicos para nos sentarmos fora do carro. Quando lá chegámos não existia um único banco. Nem um! Perdi a cabeça. Estive o resto do tempo a falar por cima de toda a gente e a criticar a escolha do local de comezaina. Gritar possui um efeito cómico óbvio: cria uma hostilidade desproporcionada a uma ocasião corriqueira como comer a olhar para um rio, provocando o riso como reacção. O problema é que há vários tipos de riso; um deles é o nervoso. Sem me aperceber, foi esse o riso que provoquei toda a noite.
Depois de acabado o banquete e de ter dado boleia a vários amigos só me restava deixar em casa o meu compincha João. Chegando à sua casa, ele disse:
- Epá, hoje estiveste muito agressivo. O que é que se passou? – E eu disse:
- Vai para o caralho!
Lá está: a mente e a memória são traiçoeiras. Eu não enviei ninguém para o caralho ontem à noite. Se bem me lembro, o que eu disse ao João foi:
- Eia, a sério? Não queria de todo passar essa ideia. Estava a tentar ser engraçado, e vocês até se riram… - O João olhou para mim com os seus olhos de avozinha doce como se me fosse fazer uma festinha na cara, dar uma tacinha de pudim flan ou um conselho para a vida, e disse enquanto saía do carro:
- Vai para o caralho!